Um estudo sobre a pornografia de vingança como instrumento de perpetuação dos casos de violência contra mulher na internet

#Direito da Mulher#Direito Digital#Direito Penal

Compartilhar:

Débora Garcia Duarte (Advogada, graduada UNIFIO; Mestre em Ciências Juridicas, UENP, Pós graduanda em Gestão Pública PUCPR)

 

RESUMO

O presente estudo propõe a análise do crime de pornografia de vingança no âmbito da violência contra a mulher, a chamada revernge porn, relacionando-a como instrumento de perpetuação da violência contra mulher e de controle da sexualidade feminina. Busca-se analisar se o sistema de justiça atual é eficiente para garantir a proteção plena da mulher em situação de exposição e também a extensão desse evento danoso para a vida das vítimas. Os reflexos da cultura patriarcal existente em nosso país, propagam a ideia de que a mulher é objeto e propriedade do homem, relacionando a imagem feminina à mera sexualidade, o que acaba influenciando diretamente na violência que é exercida sobre elas.

Além disso, a comodidade e o fácil acesso aos meios de comunicação tecnológicos de internet, aplicativos como whasapp, redes sociais, websites, permitem o compartilhamento de conteúdo em fração de segundos, com um alcance de milhões de pessoas. Somado a falsa ideia de anonimato do autor, por estar atrás de uma tela de computador ou de um aparelho celular, o que reforça situações de humilhação da figura da mulher. Desse modo, o presente artigo pretende, primeiramente, analisar as especificidades do crime da pornografia de vingança e, por fim, compreender se o referido tratamento dado a esse crime encontra-se tutelado de maneira satisfatória dentro do ordenamento nacional. Para realização desta pesquisa fora utilizado o método indutivo.

Palavras-chave: Mulher; Sexualidade; Violência; Gênero; Exposição.

 

INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo avaliar e discutir os impactos do evento chamado
pornografia de vingança, como instrumento utilizado na perpetuação dos casos de violência
contra mulher e na repressão e controle da sexualidade feminina.

Considerando ser o tema apresentado de grande repercussão social e de necessária
discussão, o artigo pretende desenvolver o estudo sob a ótica do movimento feminista, do
Direito Penal, da Criminologia e do sistema de justiça criminal, com enfoque nas
vulnerabilidades femininas e na violência de gênero.

Busca-se demonstrar através do desenvolvimento deste estudo, que a violência contra
a mulher ultrapassa a relação entre os cônjuges e que desenvolve-se por diferentes formas e
contextos. Uma dessas diferentes formas encontra-se no controle da sexualidade feminina, culturalmente repreendida e cheia de julgamentos, resultando em forma de domínio e limitação
da mulher, reproduzindo violências e mais vulnerabilidades.

Apresentando o evento da pornografia de vingança como principal objeto da pesquisa,
tem-se como foco investigar se o sistema de justiça atual é um instrumento apto para mudar a
realidade e condição da mulher vítima desse evento, principalmente no que se refere às
vinganças, humilhações, dominação sobre o corpo da mulher e a ideia de diminuição da
condição feminina.

Questiona-se em que medida a legislação atual reforça o patriarcado enraizado em
nossa sociedade e a desigualdade entre os sexos, sendo a pornografia de vingança, justamente,
um resultado dessas desigualdades existentes.

Logo, para alcançar os fins propostos, é de suma importância analisar o poder punitivo,
utilizando-se da Criminologia como suporte para delinear como essa estrutura se manifesta e
interage frente as desigualdades de gênero e vulnerabilidades da mulher. A pesquisa refere-se
ao evento da pornografia de vingança como um retrato rico que deve explorado, tendo em vista
os reflexos de uma cultura misógina que atingem em grande proporção a condição de ser
mulher.

Nesse sentido, o artigo busca trazer o conceito da pornografia de vingança e suas
consequências para as vítimas desse evento, o impacto do uso da internet como ferramenta de
perpetuação da violência contra mulher, demonstrando que ainda é vedado a mulher o exercício
livre de sua sexualidade.

Compreendendo a pornografia de vingança um reflexo do controle social da liberdade
e sexualidade feminina, necessário questionar eventuais cumplicidades do poder punitivo, a
fim de trazer eficácia na proteção da mulher em contexto de violência de gênero, questionar
discursos e tecnologias de poder que as suportam e, voltar toda atenção às instituições de
controle penal que se dispõem a esse enfrentamento.

A metodologia utilizada será a do método indutivo, ao partir de uma análise especifica
dos projetos de lei que versam sobre o tema e das legislações já existentes de proteção a mulher
em contexto de exposição na internet, além da utilização de livros, monografias, dissertações,
teses, artigos científicos, notas técnicas, de movimentos sociais e doutrinas voltados para o
assunto.

Além disso, também será realizada a análise de dados qualitativos e quantitativos
baseados em pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e dados
contidos em sites governamentais nacionais, ONG’s nacionais e, também, em órgão
internacionais como ONU, em especial ONU MULHERES, para que além da revisão
bibliográfica, exista também a presença de dados concretos norteando a discussão.

 

A cultura da violência contra mulher e sua perpetuação na era digital                                                 

Durante séculos a violência contra a mulher não era vista como um problema social e
político, mas sim privado, devido ao fato de ocorrer em sua maioria, no espaço doméstico,
sobre a influência e dominação masculina. Apesar do número elevado de mulheres que sofriam
maus tratos, a questão era vista como algo restrito, sem que o Estado pudesse ou devesse
intervir, uma vez que era obrigação do marido conter e disciplinar sua mulher/filhas.

Se observarmos nossa sociedade atual, não estamos muito longe disso, é possível
perceber essa herança deixada pelos moldes patriarcais, nos quais a mulher ainda é vista como
propriedade, tratada como inferior, circunstâncias em que os valores não são respeitados, há
desigualdade em inúmeros aspectos.

Nossa sociedade foi construída sobre os princípios patriarcais: a ideia de que o homem
nasceu para ser forte, austero, disciplinador, chefe de família; enquanto à mulher, são atribuídas
características apenas relacionadas à fragilidade, delicadeza e subordinação para com o homem.
Para Mendes, citando Alda Facio, o patriarcado é um sistema que justifica a
dominação sobre a base de uma suposta inferioridade biológica das mulheres (MENDES, 2017).

O patriarcado busca manter a desigualdade entre os sexos e a dominação masculina,
há discriminação da condição de ser mulher por meio de várias instituições que reproduzem os
pilares discriminatórios.

Estudos indicam que, no Brasil, a violência contra a mulher não só é sistemática, mas
mantém uma vinculação com essa tradição cultural patriarcal desenvolvida a partir do processo
de colonização (MELLO, 2018, p.86).

Nas palavras de Simone de Beauvoir (1949, p 199), “a história nos mostra, que os
homens sempre detiveram todos os poderes concretos, desde os primeiros tempos do
patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos
estabeleceram-se contra ela, e assim foi que ela se constituiu como Outro”.

Essa classificação da figura feminina como Outro, expressa a posição inferior que a
mulher ocupa, como objeto, propriedade do homem, não sendo de certa forma, considerada
como um ser autônomo, detentor de suas próprias vontades. Cria-se, a figura de uma mulher
dependente do homem, reflexos da sociedade patriarcal e sexista na qual ainda estamos
inseridos, pautada na inferiorizarão do feminino e objetificação da figura da mulher.

Segundo Sabadell, desde o período da Colônia a mulher era, inicialmente, propriedade
do homem na relação pai e filha e, posteriormente, na relação de marido e mulher.
Historicamente, veremos que esse pertencimento dava à mulher o dever de assegurar a honra
de seu pai (e a comunidade em potencial afetada pela transgressão as regras culturais do
patriarcado), ao manter-se virgem, e depois, a honra de seu marido, ao manter-se fiel.

Havia uma dupla moral, de um lado permissiva aos homens e repressiva com as
mulheres, que vinculava a honestidade da mulher à sua conduta sexual. O comportamento
feminino considerado fora dos padrões da sociedade da época justificava a violência como
forma de disciplina (LAGE; NADER, 2012. p.287).

Apesar das inúmeras formas de violência e opressão contra as mulheres, o presente
estudo versa sobre a chamada pornografia de vingança, espécie de violência que busca a
humilhação e repressão da sexualidade da mulher, divulgada de maneira vexatória, sem seu
consentimento, através do compartilhamento de fotos e vídeos íntimos na internet.

O termo “pornografia de vingança” vem do inglês “revenge porn” e é utilizado para
designar o ato de divulgação, principalmente na internet, de fotos, vídeos, áudios ou qualquer
tipo de material de cunho sexual, íntimo e privado de uma pessoa, sem a autorização desta. De
modo geral, o objetivo de tal ato é causar constrangimento e humilhação para a vítima que,
apesar de ter consentido com a produção inicial do material, não autorizou a divulgação do
mesmo para terceiros.

Importante ressaltar que apensar de homens e mulheres poderem ser vítimas desse
crime, de acordo com Bruno Andrade (GAZETA, 2020), 80% dos alvos são do sexo feminino.
O comportamento feminino que o agressor buscar expor é aquele considerado como desviante
do padrão machista que institui poder de dominação do homem sobre a mulher e repressão de
sua sexualidade.

Atualmente a sociedade ainda analisa o histórico das vítimas em relação a sua conduta,
suas roupas, os lugares em que ela frequenta, seus antecedentes, a fim de justificar delitos a partir de um comportamento dito como “fora dos padrões”, meio de justificar a conduta do
agressor como se a mulher desse causa a violência que é exercida sobre ela.

A pornografia de vingança ocorre, tipicamente, quando há o término de um
relacionamento amoroso e, motivado pela vingança, o ex-companheiro compartilha o material
de cunho íntimo na internet. Resta claro, que estamos diante de uma violência justificada
unicamente em decorrência do gênero. Nota-se a presença de uma cultura onde a mulher tem o
dever de satisfazer os desejos do homem, como se realmente fosse um objeto a sua disposição.
Como mencionado, é parte de um padrão cultural que submete as mulheres a dominação,
subordinação e que pode, inclusive, levar à morte.

Importa ressaltar que além dos danos causados pela invasão e exposição da vida
privada, existe também o trauma decorrente da quebra da confiança em uma relação de cunho
íntimo. Nesses casos, o vínculo de afetividade existente entre a vítima e o agressor pode
caracterizar tal ato como uma forma de violência doméstica. Ainda, existem também inúmeros
casos onde tais materiais foram vazados por amigos, familiares e outras pessoas do círculo de
confiança da vítima.

A violência sofrida pelas vítimas da pornografia de vingança tem suas consequências
multiplicadas quando o material de cunho íntimo é distribuído na rede mundial de
computadores, somado ao fato da velocidade com a qual a exposição acontece.

Uma violência, a priori, de caráter interpessoal, torna-se uma preocupação
transnacional, uma vez que o conteúdo se espalha internacionalmente e por diferentes meios de
compartilhamentos – sites de buscas, aplicativos de conversação, mídias sociais e etc. Ainda
que a vítima busque a remoção das imagens pela via judicial, tal ordem normalmente só tem
efeito a nível local ou nacional, tornando praticamente impossível a remoção completa do
conteúdo da web.

O fato do conteúdo íntimo ser espalhado na internet agrava a violência e as
consequências que sofre a vítima da exposição, pois o material volta a aparecer vez ou outra na
web e perpetua o sofrimento da mesma. Pode-se dizer que é uma forma de violência continuada
que persegue a vítima em diferentes instâncias e momentos da vida.

Além disso, importa ressaltar que grande parte dos agressores, ao espalhar o material de cunho íntimo na web, busca assegurar a maior humilhação à vítima e o faz de diferentes formas: envio de e-mails de cunho
íntimo aos colegas de trabalho da vítima com o objetivo de afetar a sua relação com o
empregador e diminuir/prejudicar sua capacidade econômica. Divulgação de conteúdo em
redes sociais para grupo de amigos e familiares da vítima.

Também existem situações em que agressor compartilhou o conteúdo em sites que
servem como plataforma para divulgação de conteúdo de cunho sexual não autorizado e
conectou o material com informações pessoais da vítima como nome, telefone, endereço e etc.

A comodidade e o fácil acesso aos meios de comunicação tecnológicos de internet,
aplicativos como whasapp, redes sociais, websites, permitem o compartilhamento de conteúdo
em fração de segundos, com um alcance de milhões de pessoas. Além disso trazem a falsa ideia
de anonimato, por estarem atrás de uma tela de computador ou de um aparelho celular, o que
reforça situações de humilhação da figura da mulher.
Independente da forma com que a pornografia de vingança é cometida, ela destrói
relações pessoais e profissionais da vítima gerando consequências de longo prazo e de difícil
reparação (SALTER, 2013). Tudo com o fim de culpar a liberdade sexual da mulher, reprimir,
julgar.

Em decorrência da exposição do material de cunho sexual, as vítimas do crime da
pornografia de vingança não somente precisam lidar com os danos psicológicos da violência,
mas também muitas vezes perdem seus empregos e são excluídas do grupo social a qual
pertenciam. Na busca de reconstruir suas vidas, muitas vítimas acabam mudando de residência,
trocando o seu nome e ainda transformam a sua aparência física para evitar o reconhecimento,
e em casos mais graves, chegam até a cometer suicídio.

Ademais, importa salientar que ainda que homens também possam ser vítimas do
crime da pornografia de vingança, a pornografia de vingança deve ser tratada como um
problema grave no qual o gênero feminino é afetado de maneira desproporcional em
comparação com o masculino. (RICHARDSON, 2012).

Esse tipo de crime torna clara a situação de desigualdade entre os gêneros, ainda nos
dias de hoje; diminui a mulher na esfera social e reforça uma cultura de opressão, porque
historicamente, a imagem da mulher foi associada com a castidade e o recato, dessa forma, a  mulher que tem a sua vida sexual exposta acaba sofrendo consequências sociais ainda maiores que os homens.

 

A criminologia feminista e a legislação

Sendo assim, parte-se agora para o estudo da mulher no paradigma da reação social.
Diante do fato de que foi na criminologia crítica que as críticas aos controles sociais e
ao sistema de justiça surgiram, sendo justamente este o objeto criminológico, é na década de
1980, a partir do desenvolvimento da luta feminista, que emerge uma criminologia crítica
feminista. Tal criminologia passa a inserir perguntas sobre as categorias patriarcado e gênero.

Nesse sentido, de acordo com Mendes, surgem questionamentos sobre como o sistema
de justiça criminal trata a mulher, o que dá ensejo a uma nova categoria de pesquisa: a
vitimologia crítica.

Até o momento, as mulheres não eram alvo de estudos da Criminologia, e o acréscimo
do enfoque dos problemas de gênero e das temáticas feministas permitiu ampliar o objeto de
estudo da criminologia. A criminologia crítica, até então, apenas tinha como base de estudo
para os problemas sociais o capitalismo, sendo justamente as criminólogas feministas que
salientaram tratar-se de uma sociedade não somente capitalista, mas também patriarcal.

A criminologia feminista, logo, proferiu temas de análise social do crime, da justiça e
dos mecanismos de controle social que antes passavam despercebidos. O gênero passou a ser
o centro do debate, não apenas em relação ao significado da mulher, mas também do próprio
homem perante a justiça criminal.

O enforque sobre a temática de gênero permitiu reflexões importantes tanto no campo
científico quanto no campo político. Este, porque revelou a farsa da neutralidade e
racionalidade da formulação e aplicação de normas penais, que escondiam perspectivas
essencialmente patriarcais; e, naquele, no científico, pelo motivo de ter ampliado a concepção
do sistema de justiça criminal – e social. Ademais, ensejou novos pensadores e produtores do
saber, as criminólogas.

Dessa forma, com o desenvolvimento feminista da criminologia crítica, em que são
promovidos estudos sobre o sistema de justiça criminal tendo a mulher como enfoque principal,
somado às análises das instituições “capitalismo” e “patriarcalismo”, verificam-se ações
desmedidas e ineficazes para promover a proteção da mulher contra violências.

Nesse contexto, Vera Regina de Andrade discorre considerando que, o sistema não apenas é estruturalmente
incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado a
acionar – o castigo – é desigualmente distribuído e não cumpre as funções preventivas
(intimidatórias e reabilitadoras) que se atribui. (LUCENA, 2015).

Em suas palavras, o sistema de justiça criminal não é eficiente já que não previne
novas violências, não presta atenção aos diferentes interesses das vítimas, não contribui para a
compreensão da própria violência (sexual) e a gestão do conflito, bem como não contribui para
a transformação das relações de gênero. Além disso, excetuadas situações, o sistema de justiça
criminal “duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente
que afeta a própria unidade (já complexa) do movimento feminista”.

Em síntese, a falha da instituição se dá porque se trata de um subsistema de controle
social que é seletivo16 e desigual e afeta tanto os homens quanto as mulheres. Ele próprio é um
sistema por excelência de violência institucional que exerce seu poder e, também, seu impacto
sobre as vítimas. Nessa seara de complexa fenomenologia de controle social, a mulher tornasse vítima duplamente, já que a justiça criminal expressa e reproduz dois tipos de violência estrutural da sociedade, que são: a violência exercida nas relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência exercida nas relações sociais patriarcais (espelhadas na desigualdade de gênero). Portanto, tal sistema recria os estereótipos intrínsecos nessas duas formas de violência, reproduzindo desigualdade, o que é especialmente visível no campo das
sexualidades e “honra”.

Nesse aspecto, então, quanto à pornografia de vingança, o que se observa é que a
mulher, ao recorrer ao controle social formal, ou seja, ao sistema de justiça criminal, acaba por
reviver toda a cultura da discriminação, humilhação e, também, de estereotipia.

O sistema é falho, pois, ao invés de julgar o autor dos fatos, julga a vítima, reproduzindo aquelas relações
sociais que discriminam a mulher. O sistema penal, que deveria ser um órgão institucional de
proteção, repete a opressão18 e o domínio masculino, exercendo um continuum de controle
social informal, formando um órgão seletivo e vitimizador (que reforça o patriarcado).

A mulher é vista como responsável pela violência porque provocou o homem, o
agressor tem sua responsabilidade atenuada, seja porque não estava no exercício pleno da
consciência, ou porque é muito pressionado socialmente, porque não consegue controlar seus
instintos. Por isso situações de violência contra a mulher são, por vezes, naturalizadas. Essa
situação se torna mais gravosa quando isso ocorre no seio de entidades que deveriam acolher e
empoderar a mulher em situação de violência (SILVA, 2016).

Nesse sentido, diante do discorrido, torna-se inevitável não desaguar nas críticas ao
poder punitivo, que insistentemente oprime e reproduz estereótipos de gênero, especialmente
quanto à sexualidade feminina, ainda não superados pela sociedade, até porque está imersa no
discurso das tecnologias do poder, que transforma o sexo em tabu e “vexame” para as
mulheres – decorrente até mesmo da cultura do estupro. Para tanto, para demonstrar que
legislar sobre todas as possíveis violências é um erro; delegar mais poder ao sistema de justiça criminal e cada vez mais tornar a mulher vítima, corroborando o discurso de que necessita de
total proteção, não é a melhor solução.

Percebe-se que a legislação possui efeitos limitados e temporais, não cessam com a
violência e aparentemente não colaboraram para com o enfrentamento das vulnerabilidades
femininas, em especial a situação da pornografia de vingança.
Ainda, o Brasil não tem condições de implementar com eficiência os mecanismos de
proteção previstos em Lei, como proteger as liberdades (inclusive as sexuais), a integridade
física, psicológica e também a vida (GONÇALVES, 2016).

Em que pese os consideráveis avanços dos movimentos feministas, muitos ainda são as temáticas que merecem reflexão e luta, pois, a princípio, não parece ser através de uma criminalização de condutas que os
resultados mais significativos surgirão (RODRIGUEZ; DUTRA; ALMEIDA, 2019).
Até porque, em algumas situações, a vítima é julgada dentro do próprio sistema de
justiça, ou seja, aquele que deveria fornecer proteção acaba por culpabilizar e verificar se a
vítima merece esse status (ANDRADE, 2012). Instituições que, em regra, deveriam fornecer
amparo e segurança para as vítimas, por vezes perpetuam as violações, duvidando do relato,
culpabilizando e criminando as condutas, como se (a vítima) responsável fosse pela violência
exercida contra ela.

Portanto, não há garantias que a vítima não será culpabilizada, posto que o sistema
penal é androcêntrico e, ainda, ser considerada vítima não reflete objetivamente na punibilidade
do autor (ANDRADE, 2012).

Dessa feita, nota-se que na maioria das situações envolvendo crimes de pornografia
de vingança, ou seja, divulgação de imagens ou vídeos íntimos sem o consentimento de uma
das partes, recorrer à justiça não garante, efetivamente, a proteção da vítima. Isso ocorre tendo
em vista que na maioriasdos casos a exposição se dá com intuito de menosprezar a mulher, e
devido a cultura patriarcal da qual estamos expostos, os julgamentos se fazem muito maiores
do que a rede de apoio.

Nesse sentido, necessário uma reformulação da cultura através da educação, para que
possamos visualizar a sexualidade feminina sem preconceitos e estigmas, a fim de que a mulher
seja respeitada independentemente da roupa que usa, dos parceiros que se relaciona, sem que
haja exploração ou repressão de seu corpo, como se propriedade fosse.

 

Conclusão

Diante do exposto, conclui-se que a divulgação de imagens ou vídeos íntimos sem a
autorização de uma das partes cada vez mais tem sido utilizada como meio de controle e
repressão feminina. Isso ocorre porque, embora qualquer pessoa possa ser vítima do evento em
80% dos casos as vítimas são mulheres, demonstrando que os autores utilizam do
compartilhamento como uma ferramenta para causar constrangimentos femininos e,
diretamente, controle sobre a questão das liberdades sexuais.
Nota-se que não há adequação legal específica para a criminalização dessas condutas,
os argumentos apresentados pelos legisladores são limitados, dada a expansão e os danos
causados por esse crime. Não propõem resoluções que envolvam a proteção da vítima e, ainda,
pela forma como abordam a problemática, acabam vulnerabilizando ainda mais o feminino.

Tendo em vista a complexidade do assunto e a carga histórica de opressão e controle da
sexualidade feminina, defende-se que recorrer ao sistema de justiça criminal está longe de ser
a estratégia mais adequada de redução de violências contra a mulher, em pois o poder punitivo
acaba por vezes reproduzindo a cultura patriarcal e retirando a vítima da cena. Vivemos em
uma sociedade que ainda criminaliza a liberdade feminina, e diante disso, analisa o histórico
das vítimas em relação a sua conduta, suas roupas, os lugares em que ela frequenta, seus
antecedentes, seus relacionamentos, a fim de justificar delitos a partir de um comportamento
dito como “fora dos padrões”.

Faz-se necessário, portanto, a alteração das condutas sociais que mantêm determinados
padrões de comportamento, devendo o Estado intervir para efetivação da proteção para as
vítimas, que além da criminalização das condutas, soma-se à implementação das diretrizes
sobre a educação de gênero o debate nos espaços públicos sobre o patriarcado enraizado na
nossa sociedade, a discussão sobre a dominação masculina ou reprodução do trabalho a partir
da divisão sexual e sobretudo por meio de uma educação jurídica no sentido de revisão das
desigualdades materiais.

Para o enfrentamento dessa crescente violação a sexualidade feminina, mister se faz
uma intervenção que incentiva a modificação cultural por meio da educação, que reforça o
papel da mulher como sujeito de direito e afasta a inferioridade, subordinação e sentimento de
propriedade do homem sobre seu corpo.

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça no tratamento da
violência sexual contra a mulher. Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 71-102, Jan. 2005.
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/02/4f33baed63cb77eb9a4bdc20362
92c.pdf. Acesso em out. 2020.
______. Criminologia da mulher como vítima à mulher como sujeito. In:CAMPOS, Carmen Heid de
(Org). Criminologia e feminismo. Porto Alegre, Ed. Sulina, 1999.
______. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro, Ed.
Revan, 2012.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do
direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro:
Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2011.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016, v. 1.
______. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016, v. 2.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 3. ed. Rio de Janeiro:
BestBolso, 2016.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. 42. ed.
Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.
LAGE, Lara; NADER, Maria Beatriz. Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 287.
LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. Madrid: Editorial Trotta, 2007.
______. La herencia de la criminología crítica. 2. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000.
RODRIGUEZ, Liziane da Silva; DUTRA, Gabriela Ferreira. Pornografia de vingança: A violência de
gênero sob uma perspectiva social e legal. XXV Congresso do CONPEDI – Curitiba/PR. Ed. 2016.
Disponível em http://conpedi.danilolr.info/eventos/conpedi/y0ii48h0. Acesso em 22. Set. 2020.
RODRÍGUEZ, Liziane da Silva. Pornografia de vingança: vulnerabilidades femininas e poder
punitivo. Porto Alegre, 2019. Dissertação de Mestrado. 122f. Escola de Direito Programa de PósGraduação em Ciências Criminais Mestrado em Ciências Criminais – PUCSR.
LUCENA, Mariana Barrêto Nóbrega de. (Re)pensando a epistemologia feminista na
análise da violência contra a mulher: uma aproximação com a criminologia crítica. 2015. 111f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB,
2015.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2017. (Série IDP: Linha Pesquisa Acadêmica).
MELLO, Adriana Ramos. FEMINICÍDIO. Uma análise sóciojurídica da violência contra mulher no
Brasil. GZ Editora. 2ª ed. 2018.
SALTER, Michael. Responding to revenge porn: gender, justice and online legal impunity. Paper
delivered at: Whose justice? Conflicted approaches to crime and conflict, University of Western
Sydney, Sydney, September 27, 2013.
SILVA, Luciana Santos. Estudo de caso do estupro coletivo: por que a vítima é culpabilizada? Canal
Ciências Criminais. 1° julho de 2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/estudo-decaso-do-estupro-coletivo-por-quea-vitimae-culpabilizada/. Acesso em 26.Set.2020.

 

Precisa de uma advogada? Encontre uma próxima a você na nossa página inicial.

Escrito por:

Débora Garcia Duarte

Advogada, Mestre em Ciências Jurídicas e feminista. Uma constante na luta pelo empoderamento feminino e direito das mulheres