A violência obstétrica é o desrespeito à mulher (ou homem trans), tanto físico quanto psicológico, durante seus processos reprodutivos. Essa forma de violência de gênero pode ocorrer durante a gestação (pré-natal), no parto, no pós-parto ou no abortamento e viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres/homens trans, além de tirar dessas pessoas a autonomia e o direito de participar ativamente daquele momento do qual deveriam ser protagonistas.
No Brasil, 01 em cada 04 mulheres já sofreu algum tipo de violência obstétrica; esta é uma realidade extremamente comum e para mudá-la é necessário que haja, cada vez mais, conscientização e orientações acerca da prevenção e da denúncia para que o tema seja difundido e medidas sociais e políticas sejam tomadas.
É importante que tenhamos em mente que a nossa sociedade normaliza o tratamento degradante das mulheres, especialmente durante o parto. Muitas mulheres, inclusive, acreditam que o parto é, necessariamente, um processo de sofrimento e, por este motivo, sequer entendem que sofreram uma violência; o que é reforçado pela ideia de que a mãe sofre desde o primeiro momento e silenciado por discursos como “independente do que aconteceu o que importa é que agora seu/sua filho(a) está bem.”
Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) determine que Violência obstétrica é uma violação dos direitos humanos, o Brasil ainda não possui uma legislação federal específica que trate do tema; fato que não impede a punição da mesma. Além disso, existem leis estaduais que criam mecanismos de prevenção e combate à violência obstétrica;
É importante reforçarmos que a informação e o consentimento são direitos essenciais da pessoa que está gestando. O código de ética médica prevê que “todo procedimento médico precisa ser consentido“, e aqui ressaltamos que aquele “consentimento” genérico assinado na entrada na internação como condição para a realização do procedimento não é, de fato, consentimento. O consentimento deve sempre ser esclarecido e informado, e para ser válido é essencial que a pessoa tenha conhecimento de suas opções e possa questioná-las.
NA PRÁTICA, O QUE CONFIGURA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA?
1. Omissão de informações ou ausência de consentimento adequado da gestante, parturiente ou puérpera;
2. Comentários constrangedores/vexatórios, ex:
- Comentários acerca da região íntima da mulher;
- Chamá-la de exagerada/fresca por reclamar das dores;
- Homofobia diante da presença de duas mães;
- Transfobia no parto de Homem trans não tratando-o pelo nome social;
- Gordofobia: comentários acerca do corpo da gestante.
3. Ofensas, humilhações e/ou xingamentos, ex:
- “Na hora que tava fazendo não tava gritando desse jeito, né?”
- “Se você continuar com essa frescura eu não vou te atender!”
- “Na hora de fazer você gostou, né?”
- “Tá chorando por quê? Ano que vem a gente vai ser ver aqui outra vez“
4. Impedir que a parturiente grite/chore;
5. Realização de exames de toque recorrentes (medição de dilatação), por pessoas diferentes e sem a devida explicação do procedimento que está sendo adotado;
6. Falsa indicação para cirurgia cesariana
- Aqui ressaltamos a coação a qual muitas mulheres são submetidas ao discordar da indicação da cesariana e o(a) médico(a) informar que “caso algo aconteça com seu/sua filho(a) será sua responsabilidade” forçando que a mulher ceda à cesariana.
- Fato é que muita das vezes a cirurgia cesariana é indicada por conveniência do médico.
- O Brasil é 2º país que mais faz cesariana no mundo – a nossa média é de mais de 50% de cesarianas, no entanto, nos últimos 30 anos, a comunidade internacional de saúde tem considerado que a taxa ideal de cesáreas seria entre 10% e 15% de todos os partos (dados da OMS).
7. Ausência de hidratação ou alimentação da parturiente durante o trabalho de parto;
8. Não aplicação da medicação suficiente para alívio da dor
- Dentro desta forma de violência obstétrica é essencial que seja feito um recorte racial tendo em vista que a estruturação racista da nossa sociedade acarreta o fato de que à mulheres negras é ministrado menos medicação para dor devido à ideia de que estas mulheres são mais fortes e resistentes (racismo obstétrico);
9. Tricotomia (raspagem de pelos pubianos);
- Além de não ser necessária, aumenta o risco de infecções.
10. Enema (lavagem intestinal);
- Sua realização destina-se, teoricamente, a evitar que a mulher defeque durante o parto, no entanto atualmente sabe-se que este método não é eficaz, causa desconforto, é constrangedor, pode acarretar problemas para a saúde (como infecções) e não previne a liberação das fezes.
11. Restringir a posição para o parto no caso de parto vaginal;
- Em grande parte das vezes a mulher é colocada na posição que facilita o trabalho da equipe médica e não pode escolher aquela na qual se sente mais confortável, que geralmente é, inclusive, a que anatomicamente facilita o parto.
12. Amarrar a mulher durante o parto
- Esta atitude é vedada, inclusive, por protocolos de assistência ao parto do Ministério da Saúde;
- Dentro deste tópico é essencial que relatemos a realidade das detentas no Brasil que ainda são algemadas no momento do parto sob a alegação de que são “criminosas e podem fugir” embora o próprio Código de Processo Penal em seu art. 292, p.u vede o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato. Somado ao CPP, temos a recente lei 14.326/22 que também assegura o tratamento humanitário à mulher grávida presa bem como a assistência integral à sua saúde e à do recém-nascido.
13. Aplicação de ocitocina para aceleração do trabalho de parto, sem informação e concordância da parturiente;
- A ocitocina é um hormônio que tem a função de promover as contrações musculares uterinas durante o parto e a ejeção do leite durante a amamentação.
14. Ruptura artificial da Bolsa
- Nos casos em que a bolsa não rompe naturalmente e realizam esta ruptura de forma artificial há considerável chance de aumento considerável das contrações e maiores chances de infecção.
15. Realização de episiotomia (“corte” entre o ânus e a vagina)
16. Ponto do marido
- Prática misógina que limita o corpo da mulher ao prazer masculino. Trata-se basicamente de “dar um ponto a mais” no fechamento da episiotomia para que a vagina fique mais “apertada”.
17. Realização da Manobra de Kristeller (o profissional “sobe” na mulher e pressiona sua barriga empurrando o bebê pelo canal vaginal).
- A manobra é dolorosa e extremamente perigosa, pois pode acarretar lesões para a mãe (pode sofrer fratura de costelas, descolamento da placenta, ruptura do períneo devido à forte pressão) e para o bebê (pode sofrer traumas encefálicos, além do risco de reduzir a oxigenação cerebral).
18. Negativa ao direito de acompanhante (assegurado pela lei nº 11.108/2005);
- A lei nº 11.108/2005 prevê que será garantido às parturientes o direito ao acompanhante no SUS; Esta garantia se aplica tanto a partos vaginais quanto a cesarianas;
- É ilícita a cobrança para que se faça jus a este direito – A(o) acompanhante indicado pela parturiente não precisa ser o pai (não é um direito deste); será escolhida a pessoa que a parturiente desejar.
- O direito ao acompanhamento se estende a todo o processo de pré-parto, anestesia, parto e até dez dias após o parto.
- A falta de condições nas instalações do hospital não pode ser utilizada como motivo para impedir a entrada do/a acompanhante.
- Portaria 415/14 do Ministério da Saúde: “§3º É importante garantir a presença de acompanhante durante toda a permanência no estabelecimento de saúde quando da realização desse procedimento.”
19. Separação mãe-bebê e apoio desumanizado à amamentação
- Impedimento do contato pele a pele (mãe-bebê) sem impeditivo clínico que justifique;
- No pós-parto, muitos profissionais chegam tocando a puérpera e “apertando” seus mamilos sem sequer se apresentar ou explicar o porquê do procedimento;
- Embora o Brasil possua o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, muitas maternidades não o respeitam e só permitem que a mãe fique com seu bebê e o amamente horas após o nascimento, mesmo que não tenha nenhum impeditivo clínico que justifique a separação.
20. No abortamento há uma tendência a pressupor que o aborto foi provocado, apesar da considerável incidência de abortos espontâneos, fato que acarreta um tratamento degradante à mulher/homens trans.
- A mulher em situação de abortamento também tem direito ao acompanhante; este direito é garantido pela Portaria 415/14 do Ministério da Saúde: “§3º É importante garantir a presença de acompanhante durante toda a permanência no estabelecimento de saúde quando da realização desse procedimento.”
?Atenção: A utilização do fórceps, por si só, não configura um violência obstétrica; este é considerado um instrumento de alívio, tecnicamente, que foi criado para retirar o bebê do canal vaginal quando não é possível a realização de uma cesariana em razão do bebê estar “muito baixo”. No entanto, este instrumento deve ser utilizado com muita cautela e estritamente nos casos necessários.
Trouxemos alguns exemplos de violência obstétrica, no entanto, na prática qualquer conduta realizada sem a explicação devida e o consentimento da parturiente ou quaisquer atos constrangedores, de coação ou que não possuam evidência cientifica são violência obstétrica.
PREVENÇÃO
Antes de tudo, para se prevenir da Violência Obstétrica é essencial a conscientização e a informação.
Além disso, a Organização Mundial de Saúde orienta que a parturiente elabore um plano de parto, um instrumento simples no qual a gestante menciona tudo aquilo com que ela concorda e com o que não concorda que seja feito durante o parto, visando evitar a violência obstétrica e garantir seus direitos. Este plano deve ser entregue tanto no Hospital/maternidade no qual será realizado o parto quanto ao médico/médica e ao pessoal da assistência.
Além do plano de parto, o ideal é que a gestante tenha uma doula, busque hospitais que tenham protocolos mais humanizados e que tenha um acompanhante bem preparado e ciente dos desejos dela para o parto.
DENÚNCIA
Ressaltamos que não é só o médico que pode praticar a Violência Obstétrica; quaisquer pessoas que estiverem ao redor daquela gestante como enfermeiro, técnico de enfermagem, fisioterapeuta, doula, recepcionista e até a pessoa responsável pela limpeza podem cometer este tipo de violência.
Nos casos em que a violência obstétrica já tiver sido consumada, a vítima deverá:
- Reunir a documentação e as provas necessária: Documentos pessoais, cartão de gestante, fotos, vídeo do parto, prontuário médico (é um direito e não pode ser cobrado), protocolos de denúncias, entre outros.
- Denunciar o profissional que praticou a violência no hospital, no plano de saúde (se for o caso), na ouvidoria de saúde e em seu respectivo Conselhos de Classe. A denúncia também pode ser feita por telefone através do Disque Saúde (136) e do Disque violência contra a Mulher (180).
- Tomar as devidas providências judiciais (sempre orientada por uma advogada), que poderão ser:
- No âmbito criminal: Boletim de Ocorrência que dará início a uma ação penal para julgar os crimes praticados;
- No âmbito cível: Indenização por danos morais e materiais.
? Envie este texto para as pessoas grávidas que você conhece, a fim de que possam se conscientizar e prevenir.
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Referências Bibliográficas:
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm . Acesso em: 15 mar. 2022.
DINIZ, Simone Grilo. et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. São Paulo: Journal of Human Growth and Development, 2015.
DINIZ, Simone Grilo. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. São Paulo, 2009.
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA. Pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito nacional sobre o parto e o nascimento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019.
FLOYD, Robbie Davis. The technocratic, humanistic, and holistic paradigms of childbirth. Berkeley: University of California Press, 2001.